Drummond alertou-me
Que de tudo, fica um pouco
O pouco de mim em ti
Desenha uma ruga a mais em teu rosto
Pesa um cansaço a mais em tuas mãos
Aquele sapato com o salto quebrado,
jogado no armário.
Eu permanecerei quando tua boca, oca,
Secar de solidão
Uma unha quebrada que não cresce
pintada de esmalte permanente preto
Nos teus cabelos mortos caídos pelos lençois
Na mancha de sangue de alguma calçada
Verás meus olhos, o pouco de mim em ti,
Nas pichações dos viadutos sujos,
talvez no centro da cidade,
no olhar de um marginal, na expressão ingenua,
todavia forte, da juventude
O pouco, o quase nada, de mim, em ti estará
Nos pés descalços dos meninos do sinal
Na lua cheia invadindo teu apartamento
Num hospital, num manicômio
Numa quimioterapia, nas tuas terapias
Na criança que te aponta a língua.
No teu enjoo do cheiro de esgoto,
Nos ares ruins de Buenos Aires.
Na tua identidade!
O muito de ti, em mim, estará
Nas brincadeiras de cabra cega
Nas camas dos hoteis
Nas ruas de Barcelona
No cheiro dos livros que me forçarão a ler
Na audiência presidida, na audiência assistida
No parque do Moinhos de Vento
Nas enchentes, qualquer catastrófe da natureza
Ventania, ondas gigantes.
Nas pessoas inconvenientes que me incomodarão
No porão da casa que não existe
No tango de um Gardel triste
Nos quadros negros, num giz
Um microfone qualquer
Na fúria dos olhos que me fuzilarão
Nas músicas do Chico, do Silvio
Na minha identidade
Na saudade humana pelo que não se conhece
Na caixa lacrada no canto da sala
nos vestidos coloridos da Mafalda
Nas segundas cinzentas no Rio de Janeiro que atravessa abril
na tosse de alguém engasgado
no jogo da forca
Do pouco que tive de ti, ficarás muito
Por pouco, deu tempo de parar
barrando para
que não estejas em tudo
É a presença fatiada: metade aqui
e a outra metade desconhecida.
Thais Dornelles