Se eu pudesse silenciar, toda a história seria distinta. Os
meus olhos deixavam claro, não abriam espaço para a mentira. Se soubesse que os
olhos, sozinhos, diriam tudo, teria escrito cartas de amor, mas as guardado
para o momento certo. Se eu pudesse acreditar no momento certo, não teria
enviado músicas, poemas, atenção. Sabotei o tempo e o tempo cobrou o preço:
mandou-me palavras vazias, um não que não libertou, excluiu-me a possibilidade
de ouvir e ver, sentenciou-me a tantas interpretações e a sentir- apenas- sem
aliança com a razão.
Todas as teorias que eu tinha sobre, eram vagas e loucas.
Nada poderia ser comprovado, nenhum sinal poderia ser levado a sério. Só eu
sabia e nem eu acreditava. Quando nossos olhos cruzavam-se, os segundos viravam
anos, todas as vozes sumiam, todos os corpos desapareciam. Ela dizia com seus
olhos, que eram de uma cor única, dizia coisas em outra língua. Eu dizia o que
ela já sabia. Eu não entendia, ela não entendia. Melhor fugir, melhor não encostar, eu supunha,
então- às vezes- ela passava de cabeça baixa ou interrompia aquela conversa sem
palavras que era integra; todos podem falar ou escrever o que bem entender, o
papel e os ouvidos suportam tudo, mas ninguém consegue dissimular com os olhos.
Mentir, talvez, diante de um bom preparo, é possível. Mas omitir, disfarçar,
mascarar, ninguém consegue. Os olhos dela me chamavam para perto. Era como se
eu soubesse totalmente a solução de um crime hediondo e não conseguisse, não
tivesse provas cabais e o assassino permanecesse impune. Eu tinha algo que foge
a razão humana, algo abstrato, intocável que só poderia ser compreendido se
houvesse empenho e interesse. Era preciso ajuda, um amigo. Nomeei o mais
sincero de todos, o mais fiel de todos, o mais presente de todos,
esquecendo-me, também, que era o mais desatento de todos. Inúmeras vezes, como
uma árvore seca, permaneci na estrada do prédio uma hora antes dela chegar,
necessitando- em certos dias- mais uma hora depois do suposto horário que ela
chegaria para depois saber que ela já estava dentro do prédio. Ficava lá, eu e
meu amigo com um cigarro na mão. Não desviava o olhar do caminho por onde ela
surgiria. Meu amigo, era amigo como poucos, prestava-se à essas situações, mas
no momento que eu provaria- seriam duas testemunhas- ele esquecia-se do que
esperávamos. Eu tinha vontade de matá-lo. Acreditava nele acima de tudo. Se ele
me dissesse que não percebeu, eu teria desistido e não estaria aqui, agora, às
05:46 da manhã sendo consumido pela insônia e tristeza da dúvida. Era tudo
coisa da minha cabeça, fuga desesperada do meu ego furioso por não ter sido
amado. Será? Convencia-me por dias disso até que chegava o dia em que ela
aparecia: lá estava, novamente, de mãos atadas com o sobrenatural. Eu a via
duas vezes por semana, todas as semanas, todos os meses. Utilizei todas as
táticas possíveis e até impossíveis como, por exemplo, fugir entre os
corredores do prédio, utilizar as escadas, fazer caminhos maiores para chegar
onde deveria e não vê-la, mas o poder da fé, tão subjetivo e inexplicável, a
força do meu pensamento de amante, fazia-me encontrá-la sempre. Eram três
elevadores no prédio, matematicamente falando, eu tinha 33% de chance das
portas abrirem para que eu entrasse ou saísse e a visse. Isso desconsiderando a
questão do tempo, da necessidade do momento exato e dos passos contados que
deveriam andar sincronizados para que nos víssemos. Eu não acreditava em
destino e nem em nada que não tivesse o auxílio, pelo menos, da ciência do
homem. Mas eu também não acreditava que era possível, perante sete bilhões de
pessoas, desejar apenas uma. Ela veio, de fato, pra fazer-me repensar minhas
teorias, veio para nomear minhas teorias, veio para resumir-me à um incapaz que
viveria inutilmente, sem brilhantismo, se ela não sorrisse e fizesse o sol mudar
de ideia e surgir durante a noite. Era preciso sabedoria para lidar com aquilo.
Era preciso tranquilidade para não ceder ao desequilíbrio da dúvida e parar na
cama de um hospital com crise de ansiedade aguda. Todas as evidências deveriam
convencer-me que eu nem existia na vida daquela mulher; que ela não perdeu um
segundo, sequer, do seu tempo tão precioso pensando em mim; que ela não se questionou por nem um momento
de como seríamos se ela permitisse a conjugação do verbo viver no pronome
nós; que em nenhuma noite ela perdeu o
sono, lembrando das minhas palavras e dos meus olhos tão ingênuos; que, em
sonhos, ela não suou ao imaginar minha boca deslizando por toda a sua pele
branca; que ela nunca nem cogitou saber quem eu era, onde vivia e como vivia e
nunca estacionou o carro diante do meu edifício só para ver-me; que ela não
desesperou-se numa mesa de bar ou no seu sofá na presença da sua melhor amiga,
contando-a que, aquela situação, a deixava confusa.
Tudo que eu queria era esquecer, ir adiante e não me prender
numa história sem lucidez. Então, os olhos dela gritavam-me algo que eu não
entendia. Era como se eu entendesse a língua espanhola, mas não tivesse domínio
suficiente. Eu captava a essência das palavras, mas quando
devia formar as frases, perdia-me e ficava tudo desconexo. Os olhos dela
diziam-me sim, amor, agora, vem, não vai, medo, confusão, dor, espanto, paixão,
admiração, respeito, mas eu tinha guardado nos meus pertences, respostas dela
que diziam: sem amor,não agora, não vem, vai, não tenho medo, não sou confusa,
minha dor vem de outro, tua ação não me espanta, não tem paixão, mas te admiro,
há muito respeito e nada mais. Eu precisava de dez minutos, não mais, diante
dela e de mais ninguém para ter certeza. Se eu a incomodava com as minhas
investidas de amor, mas deixava claro que se ela sentasse na minha frente e
convencesse-me, como boa argumentadora que era, eu partiria para nunca mais voltar,
porque havia tanta negação dela em chegar perto de mim? Tudo bem, eu aceito a
tese do descaso, da insignificância de alguém na vida de outrem, da falta de
tempo pra assuntos que não são tão relevantes. Aceito tudo, respeito todos que
me julgam louco por persistir de mãos dadas com a empatia. Eu a tinha como a
mulher mais, a mais mulher de todas, a grande mulher. E eu a tinha assim, por
todas as ações e palavras que ela tinha na vida. Era torturante pensar que ela
desprovia de imensa solidariedade para todas as causas do mundo, menos com o
meu coração. Era uma dor absurda imaginar que eu seria o único segregado na
construção do seu universo tão justo. Nunca a vi cometendo grosserias, nunca a
vi agindo sem educação e respeito, mas, por algum motivo- comigo- ela não era
capaz de ser humana. Uma vez fiquei à um palmo de distância da sua boca,
eu tive que baixar os olhos e esconder minhas mãos nos bolso porque o olhar
dela comeu todas as minhas forças e desmanchou toda a minha capacidade de
expressão. Gaguejei tanto, tremi tanto que, ao lembrar, envergonho-me. Eu
deveria tê-la encarado, eu sei, mas o cheiro do hálito dela, o perfume do
pescoço dela e, sempre, os olhos dela, inibiram toda a minha coragem que sempre
foi minha principal característica.
Hoje eu sei e já compreendo melhor muitas coisas. Respeito
muito mais o misticismo, a fé, as crenças. Ainda acredito na ciência, mas não a
tenho mais como verdade absoluta. Tudo isso, modificou-se só com a força de um par de olhos – os olhos mais
lindos que já vi- que foram capazes de igualar-se a razão e fazer-me ajoelhar e
confessar minha insignificância humana diante do que não há explicação, diante
do segredo dos olhos dela.
Thais Dornelles
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